Cientistas questionam o recente recorde e
observam que o
mais importante é a tendência gradual
de aquecimento que afeta o continente há
60 anos.
Que sejam registradas na Antártida temperaturas
superiores a 20 graus, com tempo adequado para estar de camiseta, não
necessariamente é algo ligado à mudança climática.
O continente gelado continua sendo um lugar tão remoto e inacessível para a imensa maioria das pessoas que se tende a vê-lo como um todo
e a esquecer que se trata de um descomunal território com o dobro do tamanho da
Austrália e climas e temperaturas bastante diferentes entre a costa e o
interior, entre o leste e o oeste, que bem poderiam ser continentes diferentes.
É por isso que compreender e estimar os efeitos do aquecimento numa área tão
ampla é um dos maiores desafios que os cientistas climáticos enfrentam.
Em 6 de fevereiro de 2020, um termômetro na base
antártica argentina de Esperanza alcançou uma temperatura de 18,4 graus, a mais
alta registrada desde o início das medições em 1961, segundo o Serviço
Meteorológico da Argentina. O recorde anterior no território continental havia
sido registrado em 2015, com 17,5 graus. Três dias depois, o pesquisador
brasileiro Carlos Schaefer informava à AFP que um termômetro instalado na ilha
Seymour tinha alcançado 20,75 graus, o que seria a temperatura mais alta jamais
registrada na Antártida. Era superior inclusive aos 19,8 verificados na ilha de
Signy, a mais de 500 quilômetros das costas antárticas, em 1982.
Ambas as medições foram feitas na península antártica, a
língua de terra no extremo norte do continente, que aponta para o extremo sul
da América e que é o lugar onde se concentra a imensa maioria de bases
militares e científicas.
Esse território é sem dúvida um dos epicentros do
aquecimento global em nível mundial. Algumas medições mostraram que a
temperatura média por lá subiu três graus desde a década de 1950, mais que o
dobro do conjunto do planeta. Segundo os cientistas, 87% de todas as geleiras
da península retrocederam nos últimos 50 anos, e seu degelo se acelerou na
última década.
Mas esta península abrange apenas 1% de todo o
continente, e seu clima é muito diferente das outras duas grandes zonas em que
se divide: o oeste, onde também há uma tendência a temperaturas cada vez mais
altas e retrocesso de alguns de suas maiores geleiras, e o leste, mais frio e
com uma trajetória não tão clara.
“A mudança climática é um fenômeno que se mede em um
longo período de tempo”, explica Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antártico
do Chile (Inach) e veterano pesquisador antártico. “Quando você vê a variação
da temperatura interanual e de décadas, encontra picos de temperaturas altas e também
baixas. Estas últimas costumam ser usadas pelos céticos para negar que haja um
aquecimento global, algo sem fundamento. Mas tampouco é raro encontrar picos
altos, e estes tampouco têm razão para estar diretamente relacionados com a
mudança climática, podem ser efeitos microclimáticos”, ressalta.
Francisco Navarro, glaciologista da Universidade
Politécnica de Madri, explica que as temperaturas registradas nos últimos dias
“são muito altas, embora pontuais no tempo”. “O recorde anterior difere em pouco
menos de um grau [os 19,8 graus na ilha Signy] e foi registrado há 37 anos, o
que mostra que estes picos não são algo exclusivo dos últimos anos”, acrescenta
o cientista.
Os dois recordes de temperatura nem sequer foram
confirmados ainda, algo que cabe agora à Organização Meteorológica Mundial, um
órgão da ONU. Esse processo levará meses, informou um porta-voz da OMM a este
jornal.
Em um comunicado, a organização afirma que provavelmente
a medição da base argentina é correta, mas também adverte que sobre a segunda,
mais elevada, só há referências pela imprensa, e que será preciso confirmá-la
com os dados de outras estações de medição na ilha Seymour. “É prematuro dizer
que a Antártida superou os 20 graus pela primeira vez”, ressalta o organismo.
Carlos Schaefer, o pesquisador da Universidade de Viçosa
(MG) que relatou o recorde de 20,75 graus, conta por email que essa temperatura
“foi registrada numa estação situada sobre o permafrost [terreno
permanentemente congelado] na ilha de Seymour, e que é o pico mais alto dentro
de uma tendência de temperaturas mais altas que o normal”. O pesquisador afirma
que “não é possível que a medição se deva a um erro dos equipamentos, que
estavam bem calibrados”.
“Temos muitas dúvidas de que esse registro de 20,75 graus
seja validado", opina Sergi González, meteorologista do grupo antártico da
Agência Espanhola de Meteorologia (Aemet). Na península antártica as
temperaturas do verão tendem a estar acima de 0 grau. Durante as “ondas de
calor”, ultrapassam os cinco graus e às vezes atingem 10, explica a Aemet.
Como, então, o mercúrio pôde chegar a 18 ou mesmo 20? O mais plausível é que
seja um fenômeno climático conhecido como efeito foehn, que não precisa estar
associado às mudanças climáticas.
“Este efeito ocorre quando uma corrente de ar úmido se
choca com uma cadeia montanhosa e é forçada a subir", explica González.
“Ao ascender pela face da montanha, o ar úmido esfria a um ritmo de uns três
graus por quilômetro de subida. O ar se condensa, forma-se uma nuvem
orográfica, chove ou neva e, portanto, a massa de ar perde sua umidade. Ao
baixar pelo lado oposto da montanha, o ar está seco e não se aquece muito mais
rápido, cerca de 10 graus por cada quilômetro de descida. Portanto, o mesmo ar
que em um lado estava a uma temperatura, no lado oposto da montanha fica em
outra, mais quente”, explica.
Tanto a base Esperanza como a da ilha Seymour estão
localizadas a leste da península antártica, do outro lado da cordilheira que
forma a espinha dorsal da península, a vertente pela qual o ar já seco foi
capaz de descer causando a subida dos termômetros.
“No dia do recorde, nossos companheiros de equipe na base
Juan Carlos I relataram temperaturas relativamente normais de verão, mas nada
de extraordinário, indicando a importância do foehn para atingir temperaturas
mais altas”, ressalta González. “Toda vez que há um efeito foehn no verão, as
temperaturas disparam em relação à temperatura climática média. Provavelmente,
a frequência de foehns não muda muito. O que importa mais é justamente que essa
temperatura média inicial de partida está e será cada vez mais alta”,
acrescenta o pesquisador, deixando claro que se espera que esses aumentos
repentinos do termômetro sejam cada vez mais bruscos.
“Picos extraordinários como esses não são um problema
grave, costumam ser muito esporádicos e duram menos de um dia”, explica John
Turner, meteorologista do Serviço Antártico do Reino Unido. “O que deve nos
preocupar mais é a tendência das temperaturas médias de longo prazo”,
acrescenta ele. O pesquisador ressalta, por exemplo, que na base argentina de
Marambio, que fica na mesma ilha em que supostamente a temperatura superou os 20
graus, desde os anos 90 a temperaturas médias de verão vinham caindo. No
entanto, quando se observam todos os registros desde 1970, há uma tendência
gloral de aquecimento.
Um dos grandes desafios do estudo do clima neste
continente é poder discernir a tendência global de quase meio século dentro da
qual há fortes oscilações dependendo da década.
Em 2018, foi publicada uma análise de todos os registros
climáticos antárticos feitos de 1958 a 2016. O trabalho mostrou que todo o
continente tende ao aquecimento e que esta tendência é muito mais pronunciada e
clara no oeste e, acima de tudo, na península antártica. A maioria dos
cientistas considera que essa tendência se deve em parte às atividades humanas.
A Antártica está protegida por um regime de ventos próprio
que circunda o continente e funciona como uma parede climática que o separa do
restante do planeta. Nos últimos 60 anos, essa oscilação antártica aumentou sua
intensidade no sentido horário. Isso fez
com que uma grande parte do continente, especialmente o leste, se isolasse mais
do resto do mundo e, portanto, tenha esfriado ou, pelo menos quase não haja
esquentado.
Por outro lado, essa corrente, ao dar a volta e se dirigir
novamente para o norte, afeta negativamente o oeste do continente e a
península, já que produz ar quente na saída. É nessa zona que os efeitos das
mudanças climáticas podem ser mais evidentes e chegar com mais rapidez,
incluindo o derretimento das geleiras, o aumento da área sem cobertura de neve
e, portanto, o terreno de expansão para as espécies.
A península será a
primeira parte da Antártica que deixará de ser branca e ficará verde, mas
provavelmente as temperaturas extremas eventuais não contribuem muito para
isso.
NUÑO DOMÍNGUEZ – El País
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