Os invernos são muito longos em Londres. Nem sei dizer o quanto é frio. Em Putney, parece ainda mais frio. Não nasci para viver nesse frio. Frio de todas as formas. Andar na rua dói. O ar entrando pelas narinas, pela boca, pelas frestas das roupas e casacos.
Há mais de um ano tento voltar para o Brasil. Mas, com o pouco dinheiro que consigo ganhar fazendo bicos mal consigo comer e morar num minúsculo quarto. Não fora uma boa idéia abandonar o navio e uma carreira promissora na marinha mercante.
O que a princípio me pareceu a sorte grande, foi se revelando o maior engano da minha vida.
Em um ano, eu passara de hóspede dos melhores hotéis para solteiros de Londres a um morador, praticamente de favor, de um cubículo sublocado, a certa distância do centro de Londres.
Com esse trabalho de pintura de uma casa grande com certeza eu conseguiria dinheiro para a passagem de volta para o Brasil.
Seriam três meses de trabalho, até o final de março. Uma conversa com o contratador da mão de obra me garantiu, inclusive, um quarto para morar durante a obra, na própria casa. Esse inverno estava garantido, a sorte estava virando. Já era hora, desde que chegara ao Reino Unido minha sorte me abandonara. Todas as tentativas de me lançar em negócios, que pareciam muito promissores, não deram certo. O momento não era nem um pouco propício. Uma derrota atrás da outra, até que só restassem poucas moedas.
A partir de então, comecei a trabalhar em pequenos serviços conseguidos aqui e ali, que só me pagavam a comida e um quarto aquecido no inverno. O que, no inverno londrino, pode ser a diferença entre viver e morrer de frio. Ainda mais para um brasileiro em nada adaptado a esse clima.
O quarto na obra era muito maior e mais confortável que o anterior. O aquecimento era perfeito. A casa estava toda reformada e mobiliada. Só faltava a pintura final, e era para isso que eu estava ali.
Depois do primeiro dia de trabalho resolvi ir a um Pub comemorar a virada. Voltar ao Brasil seria uma questão de poucos meses. Bebi mais relaxado do que nunca. A música boa ajudava a animar ainda mais o local. Um ajuntamento perto do balcão me a chamou a atenção. Um homem oferecia uma espécie de rifa. De longe não pude saber do que se tratava. Conforme fui me aproximando, vi fotos de um navio grande e bonito. As pessoas em volta olhavam as fotos do interior luxuoso do navio e comentavam.
Uma inglesa muito simpática sorria entre todos. Quando cheguei perto vi que se tratava mesmo de uma rifa de passagem para New York, de primeira classe num dos navios mais luxuosos do mundo. O preço barato do número da rifa e o numero de cervejas que eu já havia bebido me fizeram comprar três. Só no dia seguinte percebi que o Navio não iria para o Brasil...
O preço dos números diminuiu minha ressaca, já havia jogado muito mais dinheiro fora nos últimos dois anos. Uma das coisas que aprendi é que depois que foi nunca mais volta, portanto, seguir em frente é o melhor.
Último dia de março. Só mais uma semana pela frente. Esses últimos tempos foram os mais tranqüilos que passei aqui. Talvez, porque tivesse certeza que a minha volta para o Brasil estava assegurada. Pena que o primeiro navio para a América do sul só sairia no final de abril, teria que esperar três semanas para embarcar. Isso significa gastar dinheiro com aluguel de algum lugar para ficar essas três semanas. Lembrei-me da passagem que ganhara na tal rifa que comprara num Pub há três meses.
Um dos meus números havia sido sorteado e eu ganhara a passagem de primeira classe, e era bom tentar vende-la antes que ficasse muito em cima da hora, ou... poderia utilizá-la e aproveitar uma viagem luxuosa de primeira classe onde teria as refeições incluídas. Praticamente uma semana inteira de Rei.
Sem dúvida, vou para New York. É o destino me compensando pelo mal feito passado. Estava na cara que eu tinha que aproveitar a sorte. É o que resolvi fazer.
Saindo da Victória Station, tirei novamente o ticket da carteira para ter certeza que era verdade. Apenas dois dias depois da chegada a New York um navio partiria de lá para o Rio de Janeiro, e a passagem já estava na minha mão. Tudo sincronizado, como num imenso jogo de xadrez. Peça por peça os acontecimentos foram se movendo e o resultado é que eu iria fazer uma viagem de graça para New York, num navio luxuoso e economizando dinheiro que faria toda a diferença quando chegasse no Brasil. Afinal, são Libras esterlinas. Me senti abençoado. Parei, por um instante, e agradeci a Deus por tudo que estava acontecendo comigo desde o dia em que resolvi voltar para o Rio de Janeiro.
Tive que acordar muito cedo para estar em Southampton na hora certa. Cheguei ao porto faltando 15 minutos para o encerramento do embarque. Como se tratava de primeira classe, o horário era diferente das demais classes, o que facilitou muito o desembaraço da minha pouca bagagem.
Vendo esse enorme navio e toda essa multidão tanto dentro quanto do lado de fora do navio, percebi que não era uma partida comum, era algo maior.
Era a viagem inaugural do navio maior e mais luxuoso do mundo. Como não leio jornais e não tenho rádio não sabia de nada daquilo que estava acontecendo. E, eu ali, fazendo parte daquilo tudo. Me senti mais sortudo ainda. Gosto de coisas animadas. Sou brasileiro, gosto de dançar e brincar e ali todos estavam festejando bastante. Comecei a gostar daquela viagem antes mesmo que ela começasse.
O ano de 1912 estava sendo muito bom comigo. E, essa primavera mais ainda. Prometia. Aquele dia 10 de abril iria se tornar inesquecível, muito mais do que eu poderia imaginar. Resolvi guardar para sempre as fotos e o bilhete de embarque do navio, achei que iria valer a pena.
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A Casa Encantada
Contos do Leblon
Edmir Saint-Clair
Edmir Saint-Clair
Um livro de Crônicas e contos que são interligados pelo cenário, o bairro do Leblon. São contos de ficção e crônicas, onde as memórias históricas do bairro estão fortemente presentes. O Incêndio da favela Praia do Pinto, as festas de clubes que marcaram uma época e o modo de vida de um bairro quase que exclusivamente residencial, pé explosão de popularidade. O Leblon pré-novelas do Manuel Carlos. Contos e crônicas onde somos levados a refletir sobre racismo, preconceito, solidão, amizade, descobertas e experiências de criança, de adolescente e, por fim, de um jovem adulto. A relação com cotidiano do bairro. O autor é nascido no bairro e um conhecedor de sua história. Clipper, Pizzaria Guanabara, BB Lanches, Jobi, Bracarense e outros lugares típicos do Leblon são os palcos de muitas dessas histórias.
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