Em
uma de minhas conferências sobre esse tema, tão comum nas ciências e nas artes,
fiquei surpreso ao constatar que boa parte do público presente não tinha
clareza sobre o conceito, e entendia a crítica como sendo a “arte de apontar
defeitos” ou mesmo algo como um direito insofismável de achincalhar o outro.
Tenho
observado, também, em muitas escolas, onde alunos e pais de alunos concorrem em
“criticar” o trabalho do professor, principalmente quando chamados à
coordenação em virtude do péssimo rendimento escolar, seja pelo mau
comportamento em sala de aula, seja pelos resultados desalentadores nos exames.
E
nesse caso a “crítica” tem sabor de desforra e produz a ilusão de isenção.
Ao
apontar os defeitos do professor, quando não da escola, alguns alunos e pais de
alunos acreditam que podem, a partir daí, se eximir do cumprimento de seu papel
como protagonistas do processo de ensino-aprendizagem.
Na
crença popular essa ideia fica patente com o bordão:
Se
meu filho tirou dez – é um gênio! Agora, se tirou zero é porque o professor
e/ou a escola não presta!
Esse
“criticar” mal executado presta um desserviço à comunidade, pois esvazia seu
potencial de aprimoramento, tanto do professor quanto do aluno. Ao mesmo tempo,
que, ao banalizar um dos principais direitos e atributos que tem o ser humano,
que é o de criticar – expõe o que há de pior no ser humano:
-
O egocentrismo.
E
isso é manifestado, e de forma eloquente, na sua incapacidade de aplicar em si
mesmo o rigor da severa crítica que prodigaliza aos demais.
E
em muitas outras áreas isso é observado.
A
pseudo-crítica das falhas estruturais como desculpa para não se cumprir com o
seu papel!
Também
tenho percebido em muitos fóruns na internet, onde o anonimato obtido pelo uso
de um nickname e o trato impessoal usado em e-mails ou posts , transforma esse
direito de criticar num pretexto para atacar, para achincalhar ou menosprezar a
pessoa do outro lado.
Alguns
pela simples diversão de discordar por discordar.
Outros
pela necessidade de propagandear sua ideologia, sua crença, etc. e por essa
razão atacar decididamente, não o artigo, mas o articulista.
Ou,
ainda, esse ataques se darão por simples vaidade:
–
“Afinal com que direito o articulista desse site ousa ser mais inteligente e/ou
mais informado que eu”?
Ora,
o termo “crítica” deriva etimologicamente do grego Kritikè e significa
“discernir”.
Assim,
criticar é em seu conceito político-filosófico, a faculdade de discernir o
valor das coisas, dos eventos, dos feitos e das pessoas.
Está
intimamente ligado ao juízo de valor e ao exercício da razão.
Segundo
Kant, a crítica é uma avaliação ou um julgamento de mérito.
E
tal julgamento pode ser:
•
Estético, se contempla uma obra de arte;
•
Lógico, se contempla um raciocínio;
•
Intelectual, se contempla um conceito, uma teoria ou um experimento e
•
Moral, quando contempla uma conduta.
Ao
julgar, busca-se a equanimidade e a justiça.
O
julgamento para ser equânime, deve ser isento da intencionalidade de provocar
dano e pleno de recursos da razão, fundamentado evidentemente no conhecimento e
no anseio pelo bem.
Na
crítica, busca-se apontar não só os defeitos, mas também as qualidades e
valores e com isso avaliar a extensão dessa mesma qualidade seja da obra de
arte, do trabalho científico, do conceito, do argumento ou da conduta
objetivando o seu reconhecimento, aprimoramento e/ou superação;
A
crítica propriamente dita nunca é dirigida à pessoa. Sempre à suas ideias,
obras, argumentos ou comportamentos.
Mais
que um exercício de sintaxe, esse fato diferencia a crítica verdadeira do
achincalhe.
Pois
ideias, obras, comportamentos e argumentos não são a identidade.
A
pessoa é categoria moral e é infinitamente maior que seu simples comportamento
episódico ou somatório de algumas de suas ideias e argumentos ou o somatório de
todas as suas obras.
O
achincalhe, que significa humilhar, ridicularizar e debochar não é considerado
em termos jurídicos ou filosóficos como “crítica” e sim uma perversão de seu
significado.
Em
caso público pode ter consequências sérias, tais como processos por perdas e danos,
derivando o achincalhe para a injúria, calúnia e difamação – todos previstos
pelo código penal.
De
acordo com Dr. Ricardo Antônio L. Camargo, “também se configura o achincalhe
quando se imputa a alguém fato depreciativo e inverídico ou quando se lhe diz
algo gratuitamente ofensivo à dignidade e ao decoro”.
“O
achincalhe é sempre corrosivo, é sempre destrutivo, é sempre a base de todos os
conflitos que extrapolem motivos puramente materiais. Estereótipos,
preconceitos e mesmo ódios passam a ser considerados como o metro pelo qual se
medirá a bondade ou a maldade das condutas.”
“Quando
o fato imputado constitui crime, estamos diante do tipo calúnia. Quando o fato
é ofensivo à reputação, estamos diante da difamação. E quando se ofende a
dignidade e o decoro de alguém, sem lhe imputar fato, o que se faz é
injuriá-lo”.
Em
resumo, a verdadeira crítica vale-se de argumentos consistentes, fundamentados
no conhecimento e que objetivam julgamentos e avaliações sobre o valor (ou a
falta dele) de uma obra, conceito, argumentos, experimentos ou conduta e nada
tem a ver com ataques pessoais e achincalhes. Isso se denomina agressão.
A
crítica, juntamente com o ceticismo e o princípio da falseabilidade, tem um
papel preponderante na evolução da ciência.
Nesse
contexto, sem a crítica muitos erros científicos seriam perpetuados.
Daí,
propugnarmos na sociedade o desenvolvimento do espírito crítico e a defesa da
liberdade para exercê-lo.
E
ter espírito crítico é preconizar a capacidade humana de julgamento visando o
bem comum. Criticar é julgar para escolher, para selecionar, para promover a
melhora e a superação e exaltar o útil, o criativo, o ético e o estético, para
o bem e evolução da humanidade.
Dessa
forma, a crítica propriamente dita, corretamente praticada é sempre
construtiva.
Mas, para tal necessita-se:
• Humildade;
• Senso de humanidade;
• Tato e polidez;
• Adequação;
E acima de tudo:
• Conhecimento.
Não há como criticar algo
que não se conhece:
•
Um crítico literário deve ter conhecimento sobre literatura.
•
Um crítico de trabalhos científicos deve ter conhecimento pelo menos sobre a
área científica objeto de sua crítica.
E
assim por diante. Ora, isso é óbvio!
No
entanto, parece que no mundo de hoje as obviedades não são percebidas assim tão
obviamente.
P/ Mustafa Ali Kanso
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