Quem acompanha o que penso
há décadas sabe que o centro de minhas perplexidades tem sido a família, esse
chão inaugural sobre o qual caminharemos pelo resto de nossa vida, mais sólido
ou mais esburacado, propiciando que se ande melhor ou se tropece mais.
Acontecimentos espantosos
mostrados na mídia testemunham que precisamos ser menos românticos e mais
lúcidos para que se salve uma semente de humanidade ali onde a família deixou
de existir. Bandos de crianças e pré-adolescentes fazem arrastões em hotéis ou
lojas numa grande cidade.
Alguns, presos, são
devolvidos às mães. Ouve-se claramente uma dessas pseudomães criticar a filha,
não por ter roubado, mas por ter "roubado no mesmo lugar, sua besta".
Uma autoridade insistia brandamente em que ainda se devia apostar na família.
Sinto muito: nesses casos extremos, não acredito nisso.
Algumas famílias são a
origem do mal (e não só entre os mais desvalidos). Ali não existem colo,
abraço, escuta ou palavra: existem brutalidade. obscenidade e crueldade. Ali
não se formam pessoas, e é insensato devolver crianças ou pré-adolescentes a
esse tipo de mãe. É uma desesperada, dirão alguns, e pode ser. Mas ali o
conceito "família" não existe.
Nem acredito que essas
crianças enfurecidas, pequenos selvagens que apanhados destruíram,
literalmente, postos de polícia e salas de atendimento de menores infratores,
chutando policiais, atirando objetos longe, quebrando e rasgando o que chegava
ao alcance de sua violência, tenham possibilidade de melhoria, se devolvidas a
sua pseudofamília.
Retomadas às ruas, são um
perigo para si e para todos. A lei deveria ser muito firme nesses casos, para
socorrer esses fantasmas com carinha de criança e alma de sombra, acalmando sua
violência, incutindo-lhes o que seja convívio, dignidade, respeito por si e
pelo outro: longo caminho, longo aprendizado, longo esforço da sociedade em
compensar essas pessoinhas pelo abandono em que as deixou.
Quando se fala em redimir os
miseráveis do país retirando-os desse contexto, deve-se incluir, de imediato, o
trio moradia, saúde e educação, sem o qual somos quase bichos. Perdoem-me os
ainda líricos, mas o que se viu mais de uma vez nessas crianças foi violência
nua e crua. Talvez estivessem drogadas. Certamente não conhecem outra coisa no
ambiente insano no qual nasceram. Mas precisam, por isso mesmo, de contenção,
limite, autoridade amorosa mas firme, orientação e, antes de tudo, cuidados
básicos consigo mesmas.
Onde a família virou apenas
um mito distante, mais essencial é a ideia da educação, que não se restringe a
caderno e lápis, mas começa com a tentativa de salvar essas crianças do seu
meio com um atendimento básico em saúde e higiene, conceitos bem fundamentais
de vida, afeto, respeito, o que, naturalmente, inclui limites, disciplina,
restrições e encaminhamento paulatino, paciente mas com autoridade, a uma
condição de vida mais humana. Educação começa aí, inclui essas coisas, é
muitíssimo maior do que isso que chamamos ensino, e é condição dele.
Erradicar a miséria onde
ainda se vive em condições inimagináveis é ainda mais urgente do que ordenar o
sótão da casa, procurando expulsar os ratos e os insetos daninhos ali
instalados, reestruturar funcionamentos, dar novo sentido, deixar entrar
claridade, botar em ação espanadores, panos, água limpa, enceradeiras e ordenação
dos objetos.
Mas talvez as duas coisas
sejam essenciais e não sejam incompatíveis, embora exijam força e empenho quase
sobre-humanos: o país olha com alguma esperança para essa possibilidade.
Quem assistiu ao espetáculo
daquelas crianças ferozes aposta em se juntarem as duas pontas numa grande
arrumação de casa visando aos espectros do porão e aos ratos e lacraias do
sótão, custe o que custar, entretanto oposições, reclamações,. superando jogos
de poder e cobiça de cargos, encarando o principal: limpeza, luz, ordem,
eficiência, decência, fazendo funcionar melhor a dramática engrenagem social em
que nos debatemos.
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