Nos próximos anos, cada vez mais pessoas poderão pagar pelas benesses da biologia e estender seu tempo de existência muito além do que se crê possível hoje. Mas estamos preparados para as consequências desse novo cenário?
Acabou de sair na Nature de agosto: a revolucionária tecnologia CRISPR- Cas9, que permite editar genomas – com a praticidade das funções de copiar, cortar e colar de um processador de texto –, pode ser usada para corrigir mutações patogênicas hereditárias em embriões humanos.
No futuro próximo, doenças causadas por mutações persistentes em determinadas famílias poderão ser eliminadas do pool genético da espécie. Será possível ativar programas de expressão gênica para adicionar, eliminar ou modificar características específicas. Eventos metabólicos próprios do envelhecimento celular serão revertidos.
Milionários californianos têm feito reuniões para financiar ensaios clínicos de substâncias antienvelhecimento, como o resveratrol e ametformina. Prospectam pesquisas sobre reposição de órgãos feitos em laboratório com células reprogramadas do próprio paciente. Até mesmo descobriu-se que o acoplamento sanguíneo entre dois animais com idades bem diferentes, conhecido tecnicamente pela alcunha de parabiose heterocrônica, tem a intrigante capacidade de rejuvenescer o animal mais velho. O arcano conde Drácula não faria melhor.
Para os muito ricos, morrer parecerá cada vez menos um destino e mais uma opção, configurando aquilo que o historiador Yuval Harari chama de“Projeto Gilgamesh”, nome do herói sumério obcecado com a conquista da imortalidade.
Dentro de alguns anos talvez mesmo a classe média tenha acesso franco a essas benesses da biologia, estendendo o tempo de existência de cada indivíduo muito além do que se crê possível hoje.
Não se trata simplesmente de viver mais, pois as pessoas querem mesmo é viver melhor. Quando alimentação, exercício físico e sono ocorrem em qualidade e quantidade adequadas, vive-se mais e melhor. Some-se isso ao reparo constante de danos celulares ou sistêmicos, e a imortalidade estará ao nosso alcance.
E o que faremos com ela? Estamos preparados para suas consequências? Como lidaremos com a superpopulação? E que doenças psicológicas terríveis podem advir de não morrer?
Qual será a saúde mental de uma pessoa com trezentos anos de vida e um corpinho de trinta? Como será a interação dos verdadeiramente jovens com pessoas tão velhas, ricas e poderosas que podem habitar corpos aparentemente virgens?
Haverá ainda espaço para a inocência? Como impedir que os neo-imortais mesmerizem e manipulem os mais jovens?
Esses dilemas do futuro próximo evocam O retrato de Dorian Gray, romance de Oscar Wilde em que o protagonista deixa de envelhecer após desejar que um retrato envelheça em seu lugar. Ele passa a viver na devassidão, mas seu corpo não acusa o desgaste da vida de excessos. Enquanto Gray permanece belo e jovem, o retrato ilustra cada vez mais crueldade, feiura e decrepitude.
Acumulada por décadas, a corrupção moral e física do retrato só é exposta quando o próprio Gray, consumido pela culpa, esfaqueia o retrato para destruir o último resquício de consciência.
Pela manhã, os criados da casa acharam apenas um corpo retorcido de ancião esfaqueado no coração, diante do retrato restaurado em sua beleza original.
A história ilustra a difícil escolha ética que se avizinha.
SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
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