Visto de entrada à Coreia do Norte concedido a Suki Kim
Suki Kim, jornalista que nasceu e cresceu na
Coreia do Sul e é cidadã americana, conseguiu um trabalho para dar aulas de
inglês em uma universidade privada de Pyongyang, na qual estudam filhos homens
da elite norte-coreana, "os futuros líderes do país".
Kim passou seis meses vivendo no campus da universidade
tomando notas para convertê-las no livro 'Without You, There Is No Us: My Time
with the Sons of North Korea's Elite' (Sem você, não há nós: meu tempo com os
filhos da elite norte-coreana), publicado em 2015.
Suki Kim relatou à BBC Mundo como foi sua experiência,
algo que poucos estrangeiros puderam experimentar no hermético país que nos
últimos 70 anos esteve isolado do resto do mundo. É um lugar, como ela diz,
onde o medo é constante, todos vivem se vigiando e onde o controle do governo
"é o pior que se pode imaginar". Veja abaixo o seu depoimento.
Meu interesse na Coreia do Norte vem de uma combinação de
duas razões. Como jornalista, tinha uma frustração por não saber a verdade
sobre o que ocorre neste lugar, o que é uma enorme tragédia. E minha família
foi separada pela guerra das Coreias em 1950, o que trouxe a razão pessoal.
Essa guerra e a posterior divisão da península separaram
milhões de coreanos. Meu tio, irmão da minha mãe, ficou no norte, e minha avó
nunca voltou a vê-lo. O mesmo ocorreu com os primos do meu pai.
De Pyongyang a Seul (capital de Coreia do Sul), são
necessárias apenas duas horas de carro. Mas quando traçou-se a linha que
dividiu a península, o Paralelo 38, em 1953, as pessoas que ficaram no norte
nunca voltaram a ver seus familiares.
Eu cresci neste clima na Coreia do Sul, onde minha avó
literalmente morreu de aflição esperando o filho que acidentalmente ficou do
outro lado e não pôde nunca regressar.
A dor e ansiedade causados por esta situação se
converteram em uma obsessão. Como podemos entender esta tragédia?
Foi assim que comecei a buscar uma oportunidade para
poder entrar e viver na Coreia do Norte.
Durante uma década estive fazendo uma pesquisa sobre o
país. Falei com quase cem desertores em países vizinhos: China, Mongólia,
Tailândia e Laos.
Nesta época, entrei por períodos curtos na Coreia do
Norte, mas o que buscava era a possibilidade de poder viver ali, incógnita.
Em 2011, Suki Kim conseguiu um emprego na
recém-inaugurada Universidade para a Ciência e Tecnologia de Pyongyang (PUST),
a única universidade privada da Coreia do Norte, frequentada por filhos de
dirigentes norte-coreanos. A PUST foi fundada por grupos evangélicos de vários
países.
Seus funcionários são principalmente professores
americanos que estão ali como voluntários, financiados por suas igrejas. Kim
foi contratada para dar aulas de inglês por um período de seis meses.
A Coreia do Norte está cheia de paradoxos. E esta
universidade é uma delas.
A religião aqui não é permitida, e o proselitismo é um
crime muito sério, castigado com a morte. O único que se venera no país é o
Grande Líder.
Mas a comunidade evangélica fez um acordo com a Coreia do
Norte: ela bancaria a universidade e não faria proselitismo - apesar de ser
óbvio que este era o objetivo de longo prazo.
Assim, grupos evangélicos fundamentalistas estão
financiando a educação dos futuros líderes do país em troca de um potencial
propósito missionário de longo prazo.
O governo tem que aprovar tudo o que ocorre na
universidade. Eles selecionam os estudantes, que são principalmente filhos dos
funcionários do partido dirigente. Na Coreia do Norte, o governo decide tudo
sobre o indivíduo: a carreira que seguirá, a escola onde estudará, as
atividades que fará.
Quando estive ali, havia 270 estudantes, todos homens que
viviam no campus. Eu ensinava inglês para duas classes, com cerca de 50 alunos
de 19 e 20 anos cada.
A universidade é vigiada por militares e ninguém tem
permissão para sair. O governo define as escoltas que vivem com os professores
no campus e seu trabalho é monitorá-los 24 horas por dia. Eu tive uma escolta
me vigiando dia e noite, literalmente, já que dormia no quarto abaixo do meu.
Tudo o que fazíamos e ensinávamos devia ser aprovado,
monitorado e gravado.
Vivi o tempo todo aterrorizada. Se não tivesse escrevendo
o livro, minha situação teria sido diferente, mas estava tomando notas em
segredo e sabia que nunca ninguém tinha tentado fazer isto no país.
Mantive minhas notas em memórias de USB e sempre as
levava comigo. Todos os dias apagava tudo do meu computador e não deixava
nenhum rastro do meu trabalho.
A possibilidade de que a minha escolta descobrisse essas
notas me dava arrepios. No meu quarto, havia microfones ocultos; e todas as
aulas que eu dava eram gravadas.
É um sistema de medo constante e vivi aterrorizada
pensando que poderia morrer ali.
O que pensava de meus alunos? É uma pergunta bastante
complexa. Para o meu livro, estava tratando de entender o que pensavam e
sentiam, mas vivendo em um sistema de constante controle e vigilância ninguém
sabe realmente o que as pessoas pensam ou sentem.
Os estudantes também estão sob um sistema de supervisão
constante. Nunca estavam sozinhos. Eles se vigiavam e me vigiavam e informavam
sobre mim. Costumavam ter uma reunião semanal na qual informavam sobre os
outros estudantes e sobre os professores.
Eles são tratados como soldados. Fazem exercícios em
grupo, correm em grupo, cada hora saem para marchar em grupo para honrar o
Grande Líder, e constantemente são doutrinados sobre a grandeza do Grande Líder
e o ódio aos Estados Unidos.
Eu cheguei a sentir um grande afeto por meus estudantes,
que pareciam muito mais inocentes que outros jovens de 20 anos em outras partes
do mundo.
Eram adoráveis, enérgicos e curiosos. Os típicos
estudantes desta idade que fazem piadas o tempo todo, que falam de garotas o
tempo todo. Esse aspecto humano é um enorme contraste com o estilo de vida que
lhes é imposto e ao qual estão continuamente expostos.
Foi sob esta constante vigilância que entendi a
insuportável situação na qual vivem, o medo de estar sempre vigiando e
denunciando os demais, a impossibilidade de ir a qualquer lugar ou com qualquer
pessoa, e a forma como se restringe seu mundo, sua imaginação.
Para o resto do mundo, a Coreia do Norte é um enigma. Mas
o que pensam os norte-coreanos sobre o que está além de suas fronteiras?
Suki
Kim assegura que estes jovens não têm permissão de
expressar nenhuma curiosidade sobre o mundo exterior. E isto, diz a escritora,
é um tipo de abuso psicológico que condiciona cidadãos a aceitar o que lhes
rodeia sem questionamentos.
Nesta época, em 2011, os estudantes nunca tinham ouvido
falar de internet, e eu era proibida de falar sobre isto. Eu tinha ordens
estritas de não revelar nada sobre o mundo exterior e eles não tinham nenhuma
informação sobre o que ocorria fora de seus país, não conheciam o Taj Mahal,
nem a Torre Eiffel, e tampouco sabiam quem era Michael Jackson.
A televisão na Coreia do Norte tem apenas um canal com
programas sobre o Grande Líder. Também são transmitidos programas da China ou
da Rússia, todos baseados nos "ideais socialistas".
Há apenas um jornal e os artigos publicados também estão
vinculados ao Grande Líder. O mesmo ocorre com os livros que leem e com todas
as outras formas de educação e entretenimento.
'Cheguei a sentir um grande afeto pelos estudantes',
disse Suki Kim.
Toda sua rotina e seu entretenimento funcionam para
honrar o regime e a filosofia do sistema. Na universidade, ocasionalmente
jogavam futebol e basquete.
É preciso lembrar que estes são os jovens das elites, mas
que o resto da população vive sob o mesmo controle.
Houve ocasiões, aos domingos, quando nos permitiram sair
em grupo e com escoltas em excursões que tinham sido previamente aprovadas,
entre elas para visitar e colocar flores em edificações do Grande Líder.
Às vezes, saíamos de Pyongyang para visitar as Grandes
Montanhas ou alguma fazenda. Fora da capital não se veem muitas coisas. As
estradas estão vazias, não há carros nas ruas.
Pude ver que as pessoas fora a capital eram menores. As
pessoas com quem tínhamos permissão de interagir, como os estudantes, pareciam
com a gente. Mas as pessoas que se veem nas margens de estradas são
marcadamente menores e parecem malnutridas. Nunca nos permitiram falar com
ninguém nas ruas.
Os lugares para onde nos levavam pareciam cenários de
filme e nunca havia pessoas nesses lugares. Só víamos os outros membros do
grupo e, por toda parte, todos os lugares estavam cobertos com milhares de
slogans do Grande Líder.
Esta é a realidade que te mostram. O controle no país é
algo muito forte. Controlam cada aspecto da vida e tudo está relacionado ao
Grande Líder.
Depois de toda a investigação que tinha feito sobre a
Coreia do Norte, nunca tinha imaginado que pudesse existir um controle tão
grande. A realidade é pior do que se pode imaginar.
Kim
Suki é autora do romance "The Interpreter"(O Intérprete) e escreve
regularmente para o New York Times, BBC, Washington Post, Harper's e New
Republic.
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