A
polidez excessiva é diretamente proporcional
à
violência do desejo que ela mascara e contém.
Um pré-adolescente me contou
que ele sempre deixa as mulheres passarem primeiro nas portas, nas catracas e
em todos os limiares da circulação social, segundo ele foi instruído pelos pais
e pelos avós.
No entanto, esse gesto
cavalheiro é acompanhado por um pensamento que ele não consegue evitar e que,
um dia, ele receia, poderia explodir como um grito indomável, impossível de ser
mais uma vez reprimido.
Deixo você imaginar as
consequências que esse grito teria, pois, a cada vez que ele, nobremente,
estende a mão para convidar uma mulher (moça ou idosa, tanto faz) a passar
antes dele, o que insiste na sua mente é a frase: "Empina a bunda, sua
vaca!".
Não acho estranho: as boas
maneiras existem, provavelmente, para reprimir pensamentos, condutas e desejos,
que, se liberados, tornariam desagradável a nossa convivência social.
Não conheço estudos sobre o
costume de deixar as mulheres passarem primeiro. Algumas más línguas dizem que
nasceu como uma precaução masculina, caso houvesse assassinos esperando o homem
do outro lado da porta. Outras más línguas afirmam que era um jeito de os
homens controlarem as mulheres, pois, se elas fossem autorizadas a ficar atrás,
fugiriam na primeira ocasião.
No que me toca, aprendi que
a mulher deve passar sempre antes do homem, salvo na descida de uma escada,
quando o homem, indo na frente, tapa a perspectiva inconveniente de quem, a
partir do piso inferior, procurasse olhar por baixo da saia da mulher. Esse
deve ser um preceito recente, de quando as saias se encurtaram, mas a própria
regra de deixar a mulher passar primeiro tampouco é antiga.
Seja como for, há uma
distância notável entre, no meio de um saque, jogar a mulher em cima do ombro e
levá-la embora, para estuprá-la mais tarde, com calma (quem sabe, entre amigos)
e, no extremo oposto, abrir a porta para a mulher passar primeiro. Como ilustra
a dificuldade do jovem que mencionei, a polidez excessiva é diretamente
proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém.
Em suma, as regras de boas
maneiras podem parecer risíveis e são quase sempre hipócritas, mas, justamente
por isso, elas são úteis e necessárias -porque não poderíamos conviver sem
repressão e hipocrisia.
Norbert Elias escreveu
"O Processo Civilizador" (Zahar) em 1939. Pobre, exilado em Londres
no momento da maior barbárie do século 20, Elias procurou e encontrou a origem
da subjetividade e da liberdade modernas logo nos tratados de boas maneiras.
Isso porque as regras de
etiqueta nos ensinam a domesticar os impulsos mais perigosos e, mais ainda,
porque a preocupação com o olhar do vizinho de mesa nos obriga a sermos
minimamente graciosos.
Chato? Talvez. Mas a
novidade moderna é que a elegância é uma qualidade social permitida a todos
-basta querer. Se o requisito é a elegância (e não a nobreza, que não depende
da gente), qualquer um pode ter o que precisa para ser convidado a qualquer
jantar.
Engraçado: criticamos as
aparências e a etiqueta como se fossem leviandades, sem pensar que seu triunfo
nos libertou das barreiras intransponíveis de uma divisão social decidida pelo
berço no qual cada um tinha nascido.
Parêntese: estou lendo
"Consider the Fork: A History of How We Cook and Eat" (pense no garfo:
uma história de como cozinhamos e comemos, Basic Books), de Bee Wilson, que
conta muito bem como fomos transformados pela evolução dos costumes de cozinha
e de mesa.
Enfim, estava no meio dessas
reflexões quando fui assistir a peça de teatro "As Regras da Arte de Bem
Viver na Sociedade Moderna", de Jean-Luc Lagarce, no Sesc Ipiranga, em São
Paulo. A atuação de Lorena da Silva é perfeita. E o texto, francamente
engraçado, é uma pérola de inteligência.
Lagarce nos lembra os usos e
costumes dos rituais da vida, do nascimento até a morte, passando por batismo,
casamento, bodas de prata etc. Ele escreveu "As Regras" em 1993, dois
anos antes de morrer de complicações relacionadas à Aids; pelo destino que o
espreitava, ele poderia ter sido sarcástico com a suposta
"frivolidade" de nossos rituais.
Mas ele tomou outro caminho:
ele fez, sim, que as regras básicas de nossa etiqueta nos parecessem estranhas
e eventualmente hipócritas, mas sem que a gente perdesse de vista que elas são
a própria trama de um mundo que amamos - e do qual ele já devia sentir saudade.
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onde somos levados a refletir sobre racismo, preconceito, solidão, amizade, descobertas e experiências de criança, de adolescente e, por fim, de um jovem adulto. A relação com cotidiano do bairro.
Clipper, Pizzaria Guanabara, BB Lanches, Jobi, Bracarense e outros lugares típicos do Leblon são os palcos dessas histórias.
Contos do Leblon
Edmir Saint-Clair
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